"A caridade na
verdade coloca o homem perante a admirável experiência do dom. A gratuidade está presente na sua vida sob
múltiplas formas, que frequentemente lhe passam despercebidas por causa duma
visão meramente produtiva e utilarista da existência. O ser
humano está feito para o dom, que exprime e realiza a sua dimensão de
transcendência. Por vezes o homem
moderno convence-se, erroneamente, de que é o único autor de si mesmo, da sua
vida e da sociedade. Trata-se de uma presunção, resultante do
encerramento egoísta em si mesmo, que provém — se queremos exprimi-lo em termos
de fé — do pecado das origens. Na sua sabedoria, a Igreja sempre propôs que se
tivesse em conta o pecado original mesmo na interpretação dos fenómenos sociais
e na construção da sociedade.
« Ignorar que o homem tem uma natureza ferida,
inclinada para o mal, dá lugar a graves erros no domínio da educação, da
política, da acção social e dos costumes »[85]. No elenco dos campos onde se
manifestam os efeitos perniciosos do pecado, há muito tempo que se acrescentou
também o da economia. Temos uma prova evidente disto mesmo nos dias que correm.
Primeiro, a convicção de ser auto-suficiente e de conseguir eliminar o mal
presente na história apenas com a própria acção induziu o homem a identificar a
felicidade e a salvação com formas imanentes de bem-estar material e de acção
social. Depois, a convicção da exigência de autonomia para a economia, que não
deve aceitar « influências » de carácter moral, impeliu o homem a abusar dos
instrumentos económicos até mesmo de forma destrutiva. Com o passar do tempo, estas
convicções levaram a sistemas económicos, sociais e políticos que espezinharam
a liberdade da pessoa e dos corpos sociais e, por isso mesmo, não foram capazes
de assegurar a justiça que prometiam. Deste modo, como afirmei na encíclica Spe
salvi, elimina-se da história a esperança cristã, a qual, ao invés, constitui
um poderoso recurso social ao serviço do desenvolvimento humano integral,
procurado na liberdade e na justiça. A esperança encoraja a razão e dá-lhe a
força para orientar a vontade. Já está presente na fé, pela qual aliás é
suscitada. Dela se nutre a caridade na verdade e, ao mesmo tempo, manifesta-a.
Sendo dom de Deus absolutamente gratuito, irrompe na nossa vida como algo não
devido, que transcende qualquer norma de justiça. Por sua natureza, o dom
ultrapassa o mérito; a sua regra é a excedência. Aquele precede-nos, na nossa própria
alma, como sinal da presença de Deus em nós e das suas expectativas a nosso
respeito. A verdade, que é dom tal como a caridade, é maior do que nós,
conforme ensina Santo Agostinho. Também a verdade acerca de nós mesmos, da
nossa consciência pessoal é-nos primariamente « dada »; com efeito, em qualquer
processo cognoscitivo, a verdade não é produzida por nós, mas sempre encontrada
ou, melhor, recebida. Tal como o amor, ela « não nasce da inteligência e da
vontade, mas de certa forma impõe-se ao ser humano". "Caritas
in veritate" Carta Encíclica, Bento XVI - LMC
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